As Fogueiras e os Rapazes: Luz e Tradição no Coração de Trás-os-Montes
- Azeite a Norte

- há 4 dias
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"Quando as primeiras sombras da noite mais longa do ano começam a cair sobre as aldeias transmontanas, o fogo sagrado acende-se. E com ele, desperta uma tradição que atravessa milénios."
As fogueiras e os rapazes são os dois pilares do Natal mais autêntico de Trás-os-Montes e Alto Douro. Não se trata de folclore — são manifestações vivas de uma memória ancestral, onde o fogo purifica, a máscara liberta e a comunidade se renova [1].
O Fogo Sagrado: A Jornada do Madeiro
Da Floresta ao Adro

A preparação começa semanas antes, quando os rapazes solteiros da aldeia organizam expedições às matas. Não é simples recolha de lenha — é um ritual de passagem que exige força e coragem [2].
O que procuram:
Troncos de carvalho, sobreiro ou azinheira (madeiras que ardem lentamente)
Raízes antigas e nodosas, algumas com mais de meio século
O maior toro possível, que será o coração do madeiro
A transgressão ritual: Uma particularidade fascinante: tradicionalmente, os rapazes podem cortar árvores em terrenos alheios durante este período. Os proprietários fazem "vista grossa" — esta liberdade temporária faz parte da tradição há séculos [3].
A Construção e o Acendimento da Fogueira
A fogueira é construída com técnica ancestral: troncos maiores na base em cruz, camadas sucessivas de lenha, o tronco principal vertical, e uma coroa de ramos secos para facilitar o acendimento. Pode atingir 5 a 8 metros de altura e consumir toneladas de madeira [2].
Após a Missa do Galo (meia-noite de 24 de dezembro), toda a população reúne-se. O momento varia: numas aldeias é o padre quem acende, noutras os rapazes mais velhos, noutras ainda uma criança nascida neste ano.
Quando a primeira chama toca a lenha, o espetáculo começa — línguas de fogo sobem, faíscas dançam no ar gelado, e o calor intenso faz recuar os espectadores.
Dias de Convívio ao Redor do Fogo
O madeiro arde durante 3 a 10 dias, transformando-se no coração da aldeia:
Durante o dia: Os mais velhos conversam sentados em bancos, crianças brincam, rapazes mantêm o fogo vivo [2].

À noite: Assam-se febras de porco, chouriça e castanhas nas brasas. Bebe-se vinho e jeropiga. Contam-se histórias. Cantam-se cânticos tradicionais [2].
Petisco especial: Batatas assadas nas brasas do madeiro, regadas com azeite novo e sal grosso — simplicidade que aquece a alma.
Simbolismo Profundo
Solstício de inverno: representa a vitória da luz sobre a escuridão, celebração solar anterior ao cristianismo.
Purificação: O fogo queima simbolicamente as mágoas e conflitos do ano passado.
União comunitária: ricos e pobres, jovens e velhos reúnem-se em igualdade.
Memória: Acredita-se que o calor conforta as almas dos antepassados.
Os Rapazes: Máscara, Chocalho e Transgressão
A Irmandade dos Caretos
A Festa dos Rapazes é um sistema social complexo com estrutura hierárquica [4]:
O Rei — Coordena a festa, decide percursos, mantém a ordem. Geralmente não usa máscara, distinguindo-se pelo bastão decorado.
Os Vassalos — Auxiliam o Rei com funções específicas: guardar vinho, transportar mantimentos, tocar instrumentos.
Os Caretos — Todos os rapazes mascarados, divididos por idade e experiência.
Os Noviços — Jovens que participam pela primeira vez (geralmente aos 16 anos).
O Traje Ritual

A Máscara: Esculpida em madeira de amieiro ou castanho, decorada com cores vivas (vermelho, amarelo, verde), com feições exageradas. Algumas têm séculos de idade e são verdadeiras relíquias familiares [4].
O Fato: Saia de estopa coberta por centenas de tiras de lã colorida cosidas à mão. Coletes decorados com fitas e botões antigos. Meias altas de lã grossa [4].
Os Chocalhos: O elemento mais icónico — 5 a 15 chocalhos de bronze pendurados à cintura. Um careto pode carregar mais de 10 kg. Quando dezenas saltam em uníssono, o som é ensurdecedor [4].
As Rondas e os Rituais
Durante dias, os caretos percorrem a aldeia em rondas ritualizadas [5]:
"Achocalhar" as raparigas solteiras — aproximam-se fazendo soar os chocalhos intensamente (ritual de fertilidade).
Espalhar feno pelas ruas — simboliza fartura para o novo ano.
Entrar nas casas — cantam, dançam e recebem oferendas (enchidos, vinho, dinheiro)
Dançar caoticamente — saltos, rodopios ao som de gaitas-de-foles e bombos.
O Que os Rapazes Representam: Camadas de Significado
Fertilidade da terra: Os movimentos caóticos, o espalhar de feno, o "achocalhar" das raparigas — tudo simboliza a fertilidade que se deseja para os campos, os animais e as pessoas no ano que se aproxima.
Renovação geracional: É através da Festa dos Rapazes que os jovens se afirmam como adultos responsáveis, capazes de organizar, liderar e manter a tradição.
Ligação com os antepassados: As máscaras representam os espíritos dos que já partiram, que regressam temporariamente à aldeia. Esta é uma interpretação que muitos antropólogos defendem, ligando a tradição a cultos pré-cristãos dos mortos.
Inversão social temporária: Durante a festa, a hierarquia normal suspende-se. Os jovens mandam, transgridem, criticam — mas sempre dentro de limites aceites. É uma válvula de escape social necessária.
Identidade comunitária: Participar na Festa dos Rapazes é afirmar: "Pertenço a esta aldeia, a esta história, a esta terra". É um elo identitário poderosíssimo.
O Azeite e o Fogo: Ligação Ancestral
A ligação é profunda: como a fogueira, o azeite é luz (alimentava candeias), purificação (usado em ritos) e abundância (riqueza da terra).
Na festa:
Broas de azeite oferecidas aos caretos.
Batatas assadas regadas com azeite novo
Bacalhau ou polvo da consoada, onde o azeite é protagonista.
Doces tradicionais fritos em azeite
Muitas aldeias onde se celebram estas festas estão rodeadas de olivais centenários. As famílias que mantêm vivas as tradições são as mesmas que cultivam a oliveira há gerações. O azeite novo, colhido semanas antes, chega à mesa natalícia como outra celebração da generosidade da terra.
Preservar o Futuro
Estas tradições sobrevivem num equilíbrio frágil. O despovoamento das aldeias, as mudanças nos modos de vida e o risco de banalização colocam pressão sobre práticas que sempre dependeram da comunidade para existir.
Ainda assim, há sinais de continuidade: o regresso de quem vive fora para participar nas festas, o envolvimento das novas gerações e iniciativas locais que registam, cuidam e transmitem estes saberes de forma respeitosa.
Preservar não é congelar no tempo — é participar com consciência. Visitar as aldeias com respeito, valorizar os produtos da terra, compreender o significado dos rituais antes de os fotografar ou partilhar e apoiar quem continua a trabalhar e a produzir localmente são gestos simples que ajudam a manter estas tradições vivas.
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"Que o fogo continue a arder. Que os chocalhos continuem a soar. Que estas aldeias continuem a ser o coração pulsante de um Portugal que não esquece as suas raízes."
Vem sentir o calor. Vem ouvir os chocalhos. Vem conhecer o Natal que arde há mil anos!
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Referências:




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